Este texto foi retirado da net mas desconheço o seu autor
CULTURA OPERÁRIA em SETÚBAL


A Cultura Enquanto Expressão da Vivência de um Povo:
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Cultura Operária no Aglomerado Urbano de Setúbal
"Qualquer pessoa é portadora de conhecimentos e experiências com que actua num meio determinado e, em certa medida, ajuda a modificá-lo". A própria arte o altera. Não podemos ignorar a importância cultural da arte rupestre e de todo o tipo de expressões artísticas que se lhe seguiram. Mas o próprio conceito de arte é tanto ou mais ambíguo do que o conceito de cultura. O processo que levou e leva o ser humano a criar o ambiente em que deseja viver, a recriar elementos da natureza para os utilizar como ícones religiosos ou para os imortalizar, e a alterá-la para dela retirar melhor proveito pessoal ou colectivo, é arte e, simultaneamente, expressão da cultura dos seres humanos que agem deste modo. Logo, cada pessoa é geradora e portadora de cultura e um grupo de pessoas com os mesmos problemas, os mesmos interesses, as mesmas necessidades, a mesma profissão e até ideologias afins será também, por seu turno, criador de um tipo de cultura constituída pelo conjunto de culturas individuais dos elementos que o integram. Surge-nos, assim, uma cultura que é a expressão da vivência de um povo que forma uma sociedade com características uniformes. É, quanto a nós, a situação da população operária do aglomerado urbano de Setúbal, como, aliás, já referimos.
Encontramos, não o ignoramos, nesta mole imensa que forma o proletariado setubalense, reacções idênticas àquelas que Paulo Freire atribui a grupos deste tipo, como sejam a aceitação da sua "inferioridade intrínseca" e, consequentemente, da superioridade daqueles que tentam moldar os seus pensamentos e atitudes. Assim, são alvos fáceis das tentativas destes, aceitando os seus valores e, muitas vezes, imitando- -os. "Quanto mais se acentua a invasão, alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos, mais estes quererão parecer como aqueles, andar como aqueles, vestir à sua maneira, falar a seu modo". Era o caso dos pescadores que, quando voltavam do mar e a féria era farta, "iam de trem para a praça de touros, espalhavam notas de cem que pisavam para mostrar a sua importância". "Então, compravam boas roupas, móveis e ouro. Usavam nos dedos grandes anéis de ouro com pedras vermelhas (os cachuchos), nas camisas botões de ouro e no colete o relógio e a corrente. Era como que um investimento, pois, quando o peixe escasseava e precisavam de dinheiro para a alimentação, os objectos eram empenhados até que melhores dias chegassem. Quantas vezes os perdiam por não poderem pagar os juros ou porque o prazo passava e se esqueciam!...". O operário, mesmo o setubalense, esqueceu muitas vezes a importância das suas raízes culturais e a influência que tinha na economia local e nacional, para aceitar "subprodutos culturais destinados à alienação [ou até a] deturpação dos seus valores culturais de modo a rebaixar a sua criatividade, a apresentá-la inclusivamente como dependente de uma cultura que não consegue apreender". Em 1933, Oliveira Salazar reconhecia esta situação ao afirmar: "Nós adulterámos o conceito de riqueza, desprendemo-la do seu fim próprio de sustentar com dignidade a vida humana, fizemos dela uma categoria independente que nada tem que ver com o interesse colectivo nem com a moral e supusemos que podia ser finalidade dos indivíduos, dos Estados ou das Nações, amontoar bens sem utilidade social, sem regras de justiça na sua aquisição e no seu uso. Nós adulterámos a noção de trabalho e a pessoa do trabalhador". Esta adulteração foi também devida à insinuação dos valores religiosos e sociais que se interpenetravam, se afastavam e repeliam até, mas se mantinham profundamente enraizados no espírito, na vivência e na expressão cultural dos povos. Ouçamos, por exemplo, António Maria Eusébio, o célebre Calafate que, embora analfabeto, foi considerado um dos maiores poetas setubalenses:

"Já vi varões sem firmeza
Fidalgos sem fidalguia,
Senhores sem senhoria
E morgados sem riqueza;
Já vi pobres sem pobreza;

Mestre sem ter aprendiz;
Taverneiro sem ter giz,
Soldado sem ter capote,
Mas padre andar de chicote,
só o prior da matriz".

Realmente um padre, o representante de Deus na Terra, tratar os próprios filhos de Deus à chicotada, mostra claramente a inversão total da doutrina de Cristo, que esse mesmo sacerdote transmitia às pessoas que o ouviam e seguiam. Mas o sentimento religioso e o medo do castigo divino confundiam os crentes, levando-os a aceitar este tipo de atitudes da parte de quem, pela sua posição, apenas devia espalhar o amor, a fraternidade e até a igualdade que Cristo pregou e por isso foi crucificado. Na realidade, a pessoa do trabalhador foi adulterada mas a aquisição de novas culturas transformaram as mentes de cada ser vivente, levando-os a perceber a sua posição na sociedade e a sua importância no mundo do trabalho. O seu cérebro, limpo de ideias pré-concebidas, reconheceu as suas capacidades e passou a produzir a sua própria cultura.
Metamorfose cultural/ recepção e expressão
António Maria Eusébio, calafate de profissão e apelido, nasceu (15 de Dezembro de 1819), viveu, cantou o seu povo e faleceu em Setúbal (22 de Novembro de 1911). Os seus "ideal de liberdade e estro da poesia" levaram-no a cantar, imortalizando o quotidiano do povo setubalense. Através da sua obra verificamos a vida difícil dos pescadores, dos camponeses, dos operários; vivemos os sentimentos religioso e pagão que envolviam as festas e a própria vida de cada homem e de cada mulher, retratados nos seus versos; conhecemos as tramas políticas que aqui se travavam sem pejo; sentimos a sua paixão por uma sociedade mais justa e mais fraterna. No tipo de sociedade, por ele preconizada, a instrução generalizada não permitiria que pessoas como ele se vissem privadas da capacidade de aprender, de escrever a sua própria obra, situação que neste, tal como noutros casos, deixou mais pobre uma cultura, bem própria do povo trabalhador. Povo que, durante mais de meio século foi "retratado" por uma alma simples e pura mas sagaz, onde a malícia, a sátira e até mesmo o chocarreiro ajudaram a perceber não apenas a vida mas a própria metamorfose cultural que o povo operário setubalense sofreu desde meados do século XIX até 1911 (data do falecimento do cantador de Setúbal). Leite de Vasconcellos, reconhecendo o seu valor, caracterizou o Calafate de tal modo que nos faz pensá-lo "por dentro"; um cérebro donde brotaram tantas verdades e dores sentidas por um homem que viveu a vida dura do operário, expressando em seus versos a cultura da sua gente: "Não é lírico nem sentimental; nas suas poesias há poucas imagens e comparações. As décimas limitam-se por vezes a meras enumerações. Todavia o Calafate tem grande poder de observação: pinta o que vê em volta de si, - as árvores, os trajes populares, os objectos domésticos; discute os assuntos que no momento preocupam a opinião pública [...]; verbera, com mordaz ironia, o que na vida ou na sociedade lhe não agrada. O carácter fundamental da sua poesia é este: realista, sentencioso e satírico. Na sátira usa frequentemente da licenciosidade, como verdadeiro conterrâneo, que ele é, de Bocage [...]". Em "Homenagem", Agripino Maia consegue, através da sua pena, um retrato perfeito do corpo deste homem, em que as marcas do tempo e do trabalho se mantêm firmes e em harmonia com a beleza do seu espírito ledo e puro, calmo e feliz, recebendo a benção da sabedoria que a musa lança sobre si sob a forma de simples flores, vendo-se ao longe o brilho dos seus 82 anos num sol que se reflecte nas águas puras do Sado.
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BARCO do SADO
Agripino Maia, Sá Lagedo do Germinal, Gustavo Duré do Teza e do Pagode, colaborador de O Elmano, Ideia Nova, entre muitos outros periódicos locais e até nacionais, foi mais um dos grandes "arquitectos" da cultura operária setubalense. Nascido em 1881, em Alcáçovas, veio a falecer em 1930 de acidente, afogado no rio Tejo. Mais de 3 000 pessoas o acompanharam à última morada. Simples marceneiro, foi um autodidacta, anarquista convicto e artista de real talento: "Desenhador de traço elegante e académico, retratista, croquisseur. São notáveis os seus trabalhos [...] a lápis, à pena, desenhos, apontamentos, traços leves, sínteses admiráveis, alegorias, esboços, projectos. [...] A sua cultura adquiriu-a nas horas vagas [...]", que dedicava ao estudo, à política, aos divertimentos e à expressão artística. Admirava Camilo Castelo Branco. Olhava os seus retratos, lia profundamente os seus escritos e desenhava o Homem que ele sentia em cada palavra, em cada estudo, em cada obra. "Perfeitos estudos de psicologia, são retratos anímicos, traços confusos, sombras, o físico feiíssimo, o rosto picado de bexigas, olhos pequenos espreitando por detrás das lunetas, [...] grosso e sujo bigode, mas através dos quais o espírito do autor do Amor de Perdição surge e se revela em toda a pujança do seu talento formidável". Anular o físico para mostrar a grandeza da Alma foi, normalmente, uma das técnicas usadas por Agripino Maia que através da expressão, posições e olhares era capaz de mostrar as emoções da pessoa retratada mas também as do próprio autor. Mas muitos outros homens e mulheres do povo, trabalhadores e artistas deram o seu precioso contributo à cultura operária setubalense:
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TÚNEL do QUEBEDO
Carlos Rates, operário conserveiro, José Benedy, fotógrafo, Fernando dos Santos, pintor e desenhista, Martins dos Santos, jornalista, João Vaz, pintor, Afonso Ventura, sapateiro e jornalista, José do Vale e Lopo Gil, jornalistas, Celestino Rosado Pinto, José Cabecinha, Maestro Azóia, entre tantos outros músicos, Manuel Envia, sapateiro e escritor, especialmente de "revistas" que obtinham grandes êxitos em Setúbal e, por vezes em teatros de Lisboa e tantos, tantos mais. Esta não passa de uma simples mostra dos grandes obreiros da metamorfose cultural verificada no meio operário setubalense e da sua expressão cultural. Eram muitos os operários setubalenses que se dedicavam à intervenção directa ou indirecta, produzindo projectos ou outro tipo de trabalhos conducentes à mudança sociocultural pretendida, a não nomeação dos seus nomes não significa falta de consideração mas a impossibilidade de realizar um levantamento exaustivo, pela falta de elementos e de documentos que no-los possam fornecer, no entanto, muitos outros já foram e continuarão a ser referidos ao longo deste texto.
Os meios de aquisição e de expressão cultural em Setúbal

FESTA da TROIA
Eram imensos os meios de que os setubalenses se serviam para aquisição e expressão cultural: a leitura, a escrita e a pintura, os espectáculos de casa e de rua, os bailes, as exposições, as excursões, as festas religiosas e profanas, os desportos (incluindo os náuticos), as touradas, os passeios na Avenida, no Bonfim, pela serra e pelo rio, eram normalmente praticados e frequentados pelos autóctones. A imprensa refere-o normalmente: "O povo de Setúbal tem tanta predilecção pelos divertimentos, que talvez não haja outro que a eles mais concorra. A prova desta asserção está em que, no pretérito Domingo, houve tourada na praça D. Carlos, senão com uma enchente pelo menos com uma boa casa, e há a notar que a praça comporta 5 000 pessoas.

TEATRO D. AMÉLIA
Mais, houve récita no teatro D. Amélia com a casa cheia e, ao mesmo tempo, espectáculo com trabalhos de ginástica pela companhia Amado no seu circo/barraca, com enchentes à cunha. Ora, depois do que fica referido, [...] pode afoitamente dizer-se que ao povo de Setúbal cabe bem no que os franceses afirmam: Les portugais sont toujour gais". Mas a cultura operária tinha como princípios fundamentais a fraternidade e a solidariedade, que em Setúbal se mantiveram geralmente fortes e firmes, estendendo-se, muitas vezes, para fora da sua própria cidade. Em 1916, por exemplo, O Setubalense anunciava que "a companheira e os filhos de Bartolomeu Constantino [agonizavam] de fome num mísero quarto da grande cidade, sem cama para dormirem, sem um cobertor para se agasalharem! [...] Já que os poderes públicos nada mais fizeram do que prometer, quando da morte do grande propagandista, [era] um dever, quase uma obrigação das classes operárias setubalenses, correrem [de imediato] em auxílio da família do que em vida foi um verdadeiro paladino das reivindicações sociais e defensor dos oprimidos [...]". Este periódico abriu uma subscrição para ajudar a família de Bartolomeu Constantino, a que concorreu a esmagadora maioria do proletariado setubalense, mesmo com importâncias pequenas, pois as dificuldades destes trabalhadores eram muitas. Não podemos ignorar também o contributo de alguns elementos da burguesia setubalense, embora defensora de ideais diferentes.
Assim, verificamos que o grupo consumidor e produtor de cultura operária se encontrava, defrontava e confrontava com toda a espécie de problemas, especialmente com a cultura burguesa, e nela algumas vezes se inspirava, recolhendo elementos alheios aos seus objectivos. Estes adulteravam o projecto cultural inicialmente definido e instalavam-se em seu corpo como pequeninos "tumores", de início imperceptíveis, mas que, com o tempo, se desenvolveram até minar as células vivas do projecto original, deformando-o. As relações com o sistema político e até com o ambiente de trabalho tinham consequências talvez ainda mais devastadoras, pois que distraíam os operários e os artistas da sua principal função, ocupando-os com dificuldades relativas à própria sobrevivência. A proximidade de Lisboa se, por um lado, era benéfica pelo fácil acesso que os setubalenses tinham a todo o tipo de espectáculos que ali eram exibidos, por outro lado limitava a criatividade e a imaginação exigida a uma produção cultural própria. Apesar de todos os óbices apontados, verificamos nas produções locais, fosse qual fosse o tipo de representação (poesia, prosa, pintura, escultura, música, dança, etc., etc.), uma forte componente genuína, referências a personagens, situações e motivos setubalenses, sem jamais esqueceram as velhas tradições transmitidas de gerações em gerações e mantidas "religiosamente" nos produtos culturais do operariado deste aglomerado urbano.
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CIRCO na FEIRA SANTIAGO

E as tradições culturais, do então pequeno núcleo de pescadores, vinham de há muito tempo e desenvolviam-se na rua e junto aos conventos, igrejas e capelas então existentes. No entanto, de locais destinados somente a espectáculos apenas nos fala Almeida Carvalho, que refere a existência, já em 1644, de um "pátio das comédias", perto da ermida de Nossa Senhora do Livramento e do Postigo das Lobas. Sobre este tipo de representações insurgiu-se frei António das Chagas em 1680, apelidando-as de "Mar de vícios". Algumas exibições eram realizadas nos Paços do Concelho mas também sem o apoio das autoridades eclesiásticas, pois os párocos e outros religiosos recusavam-se a emprestar cadeiras para tal finalidade: S. Julião em 1693 e a Irmandade da Santíssima Trindade em 1701, por acharem indignas estas actividades. Não temos qualquer dúvida, pelas suas características e reacção do clero, que estas diversões se destinavam ao povo. Muitas vezes eram produzidas pelos próprios membros dos grupos sociais, outras vezes eram fruto de representações executadas por companhias ambulantes que ali realizavam os seus espectáculos, normalmente de rua, mas, posteriormente também em palco. No século XVIII apareceram também alguns salões de particulares mais importantes, onde as representações das companhias contratadas, especialmente em Lisboa, eram acompanhadas por uma pequena orquestra, normalmente local. O teatro público ressurgiu já um pouco mais sofisticado do que o representado no pátio das comédias pois, Gregório de Freitas falava de uma noite de Maio de 1760, em que se representou "a primeira comédia portuguesa nas casas do Carmo, na Praia". Nesta situação, a estratificação social continuava bem definida, uma vez que os salões particulares se mantinham. No entanto, a este tipo de espectáculo acorria já um grupo social que, não tendo acesso aos salões privados por não pertencer à alta burguesia e nobreza que aqui vinha veranear em seus palácios com diversões próprias, nem querendo misturar-se com os trabalhadores, podia comprar os seus lugares em zonas demarcadas. Com o início do século XIX, os salões privados perderam oportunidade e apareceram espectáculos públicos em zonas absolutamente reservadas. Em 1815 realizaram-se, no 2º andar do Paço do Duque, transformado "num elegante e sumptuoso teatro de recreio", algumas representações teatrais a que assistiam as famílias mais importantes da então vila de Setúbal e os nobres quando aqui se encontravam.

Após a Revolução Liberal, a estratificação social setubalense sofreu algumas alterações, tornando-se mais maleável. Quando em 1828 chegou a Setúbal uma companhia de teatro ambulante, instalou-se numa sala da Casa das Varandas (Palácio Salema), onde organizou um pequeno teatro com plateia superior e inferior, duas ordens de camarotes e ainda uma varanda corrida. Como se pode verificar, as várias classes podiam assistir ao espectáculo, em simultâneo, sem se misturarem, pois as próprias entradas eram separadas. Inicialmente os espectáculos foram acompanhados por músicos que tocavam cravo de martelos e, posteriormente, também rebeca e rabecão. Fechou em 1830.
Setúbal continuou em crescimento rápido, mantendo as suas festas e espectáculos tradicionais de rua e nas sociedades já existentes desde 1833. No entanto, a ideologia dominante manteve bem vivos, e normalmente afastados, os vários grupos sociais, dependentes das suas actividades profissionais, das condições económicas, da mentalidade, das posições políticas e do bairrismo, entre outros, sem esquecer a grande barreira que construíra entre a burguesia e o proletariado. Entre estes dois blocos sociais pouco ou nada havia em comum no campo cultural, embora frequentassem muitas vezes os mesmos espectáculos, mas ocupando espaços diferentes, cujas entradas eram por vezes separadas: "[...] não foi só a corista das pernas roliças que os rapazes das galerias fizeram vir ao palco [...]. Tanto estes, como os meninos bonitos dos fóteis [sic] também já fizeram vir as outras [...]". Com os locais de convívio algo de idêntico se passava. No início do século XX, as senhoras da alta e da média burguesia setubalense reuniam-se, normalmente no Café La Violette ou Casa das Águas e na Vacaria Setubalense, ambas situadas na Avenida Luiza Todi, onde tomavam chá, leite e alguns licores "das melhores qualidades nacionais e estrangeiras", enquanto que os homens deste estrato social se encontravam nos vários cafés, especialmente no Café Esperança, um dos mais conceituados de Setúbal.
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CAFÉ CENTRAL

Por seu turno, a pequena burguesia e algum povo trabalhador, também ele dividido em vários grupos socioculturais, e mesmo económicos, frequentavam os cafés menos conceituados como por exemplo a Esplanada Alegria, o Café Primeiro de Janeiro, o Café Petit Sport, o Café Operário, entre outros, onde o consumo era mais económico e a freguesia mais alegre.
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CAFÉ ESPERANÇA

Mas a esmagadora maioria dos operários juntavam-se nas tabernas onde, para além do habitual consumo de vinho e outras bebidas alcoólicas, se reuniam para discutir política, ler em grupo, jogar: cartas, dominó, "burro" "bicho", "não te irrites", "chinquilho", "malha", "jogo da moeda", "jogo da laranjinha", enfim, aquilo que a imaginação, as condições e o momento proporcionavam. Também nas tabernas se organizavam actividades culturais desenvolvidas pelos próprios frequentadores.
TASCA do ZÉ BENTO

Como exemplo referimos sessões de fados e guitarradas e ensaio de Cegadas, que depois representavam na rua ou no largo perto da taberna. Havia grande diferença entre as tabernas do bairro de Troino, habitado pelos pescadores dos cercos (empregados por conta de outrem), mais colectivistas, e as tabernas das Fontainhas onde os pescadores trabalhavam por conta própria, logo eram mais individualistas e mais pacatos. Assim, apesar dos parcos recursos financeiros, o proletariado setubalense conseguia ultrapassar esta situação e dedicar-se a actividades culturais. Inventava passatempos e divertimentos; integrava-se nas grandes festas organizadas pela burguesia; formavam grupos de trabalhadores mais disponíveis, realizavam as suas romarias e passeios e deliciavam-se com as belezas da vida e da natureza. Todas as festas dinamizadas pelos trabalhadores eram mais reais e vividas. A falta de meios materiais unia as famílias do grupo organizador que convidavam todos os amigos e interessados a colaborar fornecendo o trabalho e algum dinheiro, sempre muito pouco, para a aquisição dos materiais necessários. Só o espírito de solidariedade e de colectivismo que os caracterizavam e a grande dedicação às tarefas a realizar permitiam que gentes de tão parcos rendimentos pudessem organizar festas como algumas já referidas (S. Luiz da Serra, por exemplo), ensaiar teatros, danças, cegadas, marchas populares música, canto, poesia, etc., ornamentar ruas e janelas, organizar bailes com música, enfim, produzir cultura com base nas suas raízes e na sua própria imaginação.
Festa de S.Luiz da Serra

"Assim, a maior preparação para a farra, era despendida nas consideradas festas de calendário. Quando a cidade parava os motores profissionais e ligava a bateria festiva, a população setubalense não parava, pois a preparação de cada festividade requeria cuidados muito especiais. No entanto, havia ainda o saborear do lazer, por isso nunca faltavam festas em Setúbal, organizadas pelo proletariado", sem esquecer a frequência da Biblioteca Municipal, ou Popular, cujo processo de fundação, iniciado em 1871, culminou em 1873 com a inauguração da mesma e as visitas ao Museu, instalados, até 1910, no edifício da Câmara Municipal. Em 1900, a imprensa louvava a actuação do executivo camarário pelos cuidados dedicados àquelas instituições culturais, como se pode verificar através de vários artigos sobre o assunto: "[...] A Biblioteca popular deste município atravessa um período de florescência e desenvolvimento bastante para aplaudir. Continuando a Câmara Municipal a proceder como nos últimos anos, com vontade de tornar este estabelecimento de educação popular digno da nossa importante cidade, cuidando ao mesmo tempo de lhe dar uma instalação suficientemente espaçosa e elegante, com certeza que dentro de pouco tempo possuirá uma das primeiras bibliotecas públicas do país". A estatística do ano de 1899 foi a seguinte: Frequência diurna 844 leitores; frequência nocturna 1 559; obras pedidas 2 403; visitaram a biblioteca 83 forasteiros; entraram durante o ano 472 volumes. Para o museu de numismática entraram 11 moedas, sendo 5 de prata compradas pela Câmara, 5 de cobre oferecidas por João José Salgado Júnior e 1 de cobre dada por Francisco Martins da Costa, todas da segunda dinastia. Em 1900 houve uma frequência de 594 leitores diurnos, 1072 nocturnos e 116 visitantes. Foram pedidas 1666 obras, tendo entrado 147. Os leitores distribuíam-se pelas seguintes profissões: ramo científico 17, estudantes 182, militares 151, empregados públicos 40, comerciantes 60, artistas 69, operários 835, proprietários 73, diversos 240.
Na noite de 4 de Outubro de 1910, como já foi referido, o incêndio que consumiu o edifício dos Paços do Concelho destruiu também a Biblioteca e o Museu. Após vários apelos feitos pela imprensa local, foram reinstalados posteriormente numa sala do Liceu Municipal, mantendo uma boa frequência, apesar da exiguidade do espaço disponível. Em 1918 foi concedida a Setúbal uma biblioteca móvel que fornecia livros para leitura ao domicílio, melhorando, assim, a situação cultural deste aglomerado urbano, conjuntamente com a biblioteca fixa que continuou a funcionar regularmente. A

Santa Casa da Misericórdia também inaugurou o seu Museu que franqueou ao público.
O meio habitacional, enquanto indício sociocultural
Segundo Klaus-Jürgen Sembach, os finais do século XIX trouxeram duas novidades importantes: "O cinema e a Arte Nova", cujos objectivos e ambições se assemelhavam por ambos serem produto da era industrial que revolucionara o mundo. A burguesia setubalense não foi insensível ao fenómeno e mandou edificar, nas zonas residenciais por excelência, alguns bonitos exemplares em que a Arte Nova esteve presente.
O rápido desenvolvimento industrial verificado no aglomerado urbano de Setúbal, desde o incremento da indústria conserveira, como já foi referido, de finais do século XIX até cerca de 1920, fez com que, apesar das mortes provocadas pelo surto pneumónico de 1918, sem esquecer algumas perdas causadas pela Guerra de 1914-1918, a população setubalense registasse um ritmo de crescimento anual bastante considerável, nos anos de 1911 a 1920 (3,1%). Entre 1920 e 1930 o ritmo de crescimento populacional foi menos intenso, uma vez que as crises consecutivas que se verificaram nos sectores da pesca e das conservas de peixe, não permitiram a manutenção do ritmo da imigração.

A população de Setúbal era constituída fundamentalmente por operários e pescadores e por uma minoria denominada burguesa, constituída por elementos ligados à indústria, especialmente de conservas de peixe, à actividade comercial e portuária e ainda por alguns armadores de pesca. A designada pequena burguesia era constituída por pequenos armadores, comerciantes, agricultores, alguns funcionários públicos e intelectuais (pintores, músicos, escritores, jornalistas, entre outros).
O fluxo migratório verificado provocou graves carências no parque habitacional, especialmente para os trabalhadores que chegavam ou que queriam constituir família. Já em 1910, a Associação de Classe dos Trabalhadores de Fábricas de Conservas comentava a situação dizendo que, no referente à habitação, em Setúbal não existiam "compartimentos dignos desse nome [...]. O habitáculo do operário [era] uma jaula com pretensão a moradia habitual. Quanto à salubridade, a pior possível". No entanto, dois bairros se ampliaram nos extremos opostos da cidade: Troino e Fontainhas. O primeiro, no extremo ocidental da cidade era habitado por gentes vindas do Algarve para trabalhar nos cercos e nas fábricas de conservas de peixe, enquanto que o segundo, no extremo oriental de Setúbal, albergava os emigrantes das regiões do norte que vinham, normalmente pescar nos seus próprios barcos o chamado "peixe graúdo" mas também para trabalhar nas fábricas de conservas à semelhança do que se passava com os algarvios de Troino. A edificação destes bairros deveu-se aos marítimos que, com as suas parcas economias, construíam a sua casa, pequena, com poucas condições mas o suficiente para viverem com um mínimo de dignidade, embora por vezes até esta faltasse. À semelhança do que acontecia com outros jornais, o República, em 1913, publicou um artigo, onde o diverso e o contrastante se evidenciavam, onde a beleza e a miséria se misturavam, em situações absolutamente gritantes, no meio dos laranjais. "[...] Míseros casebres [...] em que tantos seres humanos escondem o seu sofrimento, e se consomem em suas próprias dores, sem terem a coragem para protestarem contra tamanha iniquidade social. De facto, a par de muitas edificações perfeitamente modernas, que nestes últimos anos se têm vindo a fazer em Setúbal, encontram-se também, triste é dizê-lo, alguns quarteirões imundos, vielas tortuosas. Amontoados de casebres, cujas paredes e coberturas são de lata, verdadeiros cortiços de infortúnios, vícios e misérias, que em nome da higiene física e da higiene moral de seus resignados habitantes, exigem a sua mais completa e formal remodelação". Mas a própria cidade, "entalada" entre o rio e as quintas onde se produziam as célebres laranjas que os países europeus (especialmente a França) tanto apreciavam, sofria problemas de higiene e limpeza, de policiamento, de iluminação, de segurança e, especialmente, de espaço, que se agravavam de dia para dia.
O Republica continuava criticando esta situação e reclamando a sua rápida resolução: "[...] Setúbal é uma cidade onde predominam as ruas e travessas estreitas. Nestas condições as casas que as limitam são habitações estranguladas, sem ar, sem luz, sem vida. Nelas fermenta a podridão, a doença e a miséria. São pequenos cubículos, onde dormem famílias numerosas, aconchegadas na mais perigosa promiscuidade. Pelas portas e janelas esguias, sai um hálito pestilento de febre, um cheiro de uma boca cancerosa, que entorpece, infecta e mata [...]". Já nos finais do século XIX, Fialho de Almeida, depois de visitar Setúbal, e a propósito do aproveitamento da fortaleza do Outão para residência de veraneio da família real, tecia comentários idênticos às casa e ruas do aglomerado urbano de Setúbal. Urgia, portanto, solucionar o problema, construindo mais habitações, quer para os operários, quer para a burguesia que já se não sentia bem no centro da cidade demasiado degradado, no referente ao pavimento e higiene das ruas, e dos próprio edifícios, já desactualizados.
Assim, a burguesia local investiu, embora timidamente, em direcção às quintas. Foi o caso do Bairro Salgado, projectado desde finais do século XIX, mas cuja construção apenas se iniciou no início do século XX e se prolongou até 1920 e 1930 (2ª fase). Inserido na freguesia de Santa Maria, uma das mais antigas da cidade, foi delineado entre a Rua de S. João, Rua Almeida Garret, Rua Nova da Conceição, Campo do Bonfim e Baluarte do Socorro. Esta foi a zona residencial por excelência nos anos de 1920, cujas vivendas, normalmente unifamiliares, se inseriam em grande parte na arquitectura pertencente à corrente denominada de Arte Nova. A planta do bairro apresenta-se "reticulada, racionalista e monótona onde as ruas são apenas áreas de circulação, começando o convívio, e também o isolamento, dentro do logradouro murado de cada habitação". Este tipo de casa reflectia a fraca sociabilidade dos industriais, individualistas por natureza, facto que se verificou na falta de colaboração no sector industrial e, consequentemente, na não existência de convívio nas horas de lazer. Também em espaço de uma das mais antigas freguesias de Setúbal, S. Julião, foi construído na década de 20, o Bairro Nascimento, limitado pela Rua de S. Caetano, pela Rua de Jesus, Largo de Jesus e Estrada da Boa Morte, ocupando assim a Horta dos Macacos. Ocasionalmente surgiram também habitações da classe dominante setubalense na Rua Ocidental do Campo do Bonfim e ainda nas imediações rurais e junto das estradas principais que saíam de Setúbal. Estas habitações possuíam sempre casa de banho e, normalmente, "fossas mouras", eram bem iluminadas e amplas. Os próprios industriais não aceitavam a construção de unidades fabris junta das zonas residências burguesas, salvo raríssimas excepções e, mesmo assim, em espaços relativamente afastados para não serem incomodados pelos cheiros, pelo barulho e pela presença dos operários junto às suas moradias. O centro da cidade e a Avenida Luiza Todi iam, pouco a pouco, transformando-se em centro comercial, de serviços públicos e ainda de recreio, onde foram introduzidos elementos neo-clássicos e de tendência Arte Nova.
A pequena burguesia, constituída principalmente pelos comerciantes dos bairros onde viviam os operários e de algumas zonas do centro da cidade mais degradadas, possuíam a sua residência unifamiliar, com o mínimo de condições, especialmente com casa de banho, elemento valorativo da habitação e de seus habitantes. O exterior da casa distinguia-se das casas dos operários, pois algumas apresentavam-se já decoradas com elementos, embora simples, característicos da corrente Arte Nova, de que destacamos os azulejos, os balaústres e alguns relevos. No entanto, integravam-se na arquitectura do bairro onde estavam radicadas, sem grandes diferenças salvo o número de divisões, a organização interior onde não faltava a casa de banho, embora familiar, a cozinha, os quartos e a sala de dimensões mais razoáveis do que as praticadas nas habitações dos trabalhadores.
As cores do exterior eram normalmente garridas, oscilando entre o rosa e o amarelo, com as quais combinava o friso de azulejos do tipo Arte Nova.
"O habitar das classes laboriosas era bem diferente do da burguesia e extraordinariamente penoso. Em finais do século XIX, a imprensa local alertava a população do aglomerado urbano de Setúbal para os perigos provenientes do estado em que se encontravam as casas do Bairro das Fontainhas que considerava como "um bairro perigoso" enquanto "acumulação de famílias pobres, que se [empilhavam] em casas pequenas e infectas por falta de casas baratas e em boas condições de salubridade. O alargamento do bairro [deveria] ser feito segundo um plano pré- -estabelecido e não com base na construção de casinhas onde e como cada utente [desejasse] fazer. Ao acaso, sem alinhamento, sem orientação, sem higiene, formando becos, recantos e travessinhas, ali se [ia] fazendo um pequeno bairro que dentro de alguns anos [se poderia tornar] num foco pernicioso de doenças".
O antagonismo entre burguesia e proletariado projectou-se, pois, de forma exemplar na organização do espaço urbano. "Com efeito, as respectivas áreas residenciais repelem-se, sendo o fosso assim aberto colmatado pela chamada classe média".
Os trabalhadores, de que destacamos os pescadores que já habitavam os bairros extremos da cidade, continuaram a expandir-se nestes locais, embora em situações financeiras bem diferentes. A ocidente, os habitantes de Troino eram mais pobres e as suas casas e exteriores bastante mais degradados. Daqui nasceram o Bairro Melo e o Bairro Ferreira, limitados pela Rua do Castelo, Rua da Herdade, Viso e Olhos de Água. Para Oriente, saindo das Fontainhas, bairro habitado por pescadores por conta própria, nasceu o Bairro Santos Nicolau, de "traçado vagamente radial, com moradias geralmente unifamiliares, térreas, com três ou quatro divisões, sem casa de banho. As fachadas são pobres, decoradas por platibandas maciças, molduras ou frisos, mais raramente por azulejos. Algumas destacam-se pela sua cércea, na paisagem monótona deste bairro, possuindo mais de um piso e apresentando fachadas elaboradas [...]. O Bairro Rendeiro, contíguo ao anterior, desenvolveu-se também nos anos 20".
Bairro do Viso

Esta era a realidade embora, desde o início do nosso século, a imprensa denunciasse casos absolutamente inaceitáveis de habitação do operariado setuba-lense. Ao implantar-se a República, o assunto da construção de bairros operários, com um mínimo de condições para que estes vivessem condignamente, foi desde logo alvo das atenções parlamentares e preocupação permanente dos governadores locais, que desejavam acabar com a situação vergonhosa em que os trabalhadores viviam nos bairros Lopes, Folha e Pinheirinhos. O presidente da Comissão Executiva da Câmara Municipal de Setúbal apresentou um projecto para viabilização de um plano de urbanização da cidade, com definição do espaço construído e das zonas a serem abrangidas pelas novas construções. Neste projecto estavam previstos os bairros operários ou mesmo, se fossem consideradas necessárias, zonas residenciais de renda social, tendo obrigatoriamente sanitas com autoclismo e, se possível, jardim na rectaguarda para cultivo de flores e de legumes. No entanto, em 1920 nada de substancial se havia ainda feito no referente à habitação social. Pescadores e operários conserveiros continuavam a viver nas zonas periféricas a oriente e a ocidente da cidade, tanto quanto possível próximo dos seus locais de trabalho, normalmente o rio, em casas mais ou menos abarracadas, onde habitavam famílias numerosas. Formavam autênticas "ilhas" como o Bairro Gamito e o Pátio do Peixe-Rei, na freguesia de S. Julião; bairros de lata nas freguesia de S. Sebastião e de Nossa Senhora Anunciada; ou residiam em pátios, vedados, para que a miséria não fosse vista do exterior, onde famílias inteiras chegavam a residir numa só divisão. Principalmente a partir de 1924, os proprietários de algumas habitações dos bairros Santos Nicolau, Rendeiro e Trindade, entre outros, descobriram que, murando os seus quintais, podiam construir barracas para alugar, transformando-os em pátios, embora desde 1923 se falasse já em Bairros Sociais que, em Setúbal não chegaram a ver a luz do dia até ao final da década. Apenas em 1924 aparecem notícias mais positivas sobre limpeza das ruas (aquisição de carroças mecânicas que varriam e regavam ao mesmo tempo), sobre o começo da construção de um bairro operário, arranjo das estradas e ruas, iluminação, praia de banhos no Portinho da Arrábida, entre outras propostas para melhorar a beleza da cidade, assim como as condições de vida dos seus habitantes, objectivos que, infelizmente, só parcialmente foram conseguidos até 1930. Foi nesta data que se inaugurou a luz eléctrica em Setúbal, melhoramento imprescindível para os habitantes desta cidade, à semelhança do início das obras do porto que tanto favoreceram os pescadores, os industriais e mesmo os operários que se incumbiam do transporte do peixe da doca para as fábricas. A Exposição Regional foi, além da sua expressão política e económica, uma manifestação sociocultural de grande importância para os habitantes do aglomerado urbano de Setúbal, que tiveram ocasião de mostrar, não apenas aos seus conterrâneos mas também aos forasteiros, o produto do seu trabalho e ainda as actividades inerentes à sua própria cultura.
Espectáculo de Saltibancos

Cultura esta que brotava de qualquer associação, de qualquer rua, de qualquer grupo, de qualquer casa ou mesmo de qualquer indivíduo. Alguns pátios e vilas, embora pobres, aproveitavam o espaço aberto no centro das habitações para convívios e festas, especialmente bailes e cegadas, com artistas da própria comunidade. Por vezes acorriam espectadores atraídos pelas cantadeiras, cantadores, tocadores e artistas locais que ali se exibiam. Era um tipo de expressão cultural que, embora semelhante ao que acontecia noutros bairros operários, se tornava mais expressiva pela simplicidade e familiaridade dos participantes. Afinal toda a gente participava, porque todos colaboravam no arranjo do pátio, nas comidas, nos fatos, enfim, em todo o convívio, parte integrante da vivência daquele grupo.
Setúbal: paradigma cultural?
Quando Pascal se interrogava sobre que quimera seria o homem, concluindo pela complexidade deste ser vivo tão cheio de contradições e incertezas, e Edgar Morin o desdobrava em inúmeros seres tão diferentes para tentar uni-los e formar o verdadeiro homem, ambos concluíam pela impossibilidade da existência de um paradigma humano, uma vez que os inúmeros traços que o definem "se dispersam, se compõem, se recompõem, consoante os indivíduos, as sociedades, os momentos, aumentando a incrível diversidade da humanidade". Conhecedores desta realidade, tentaremos analisar o processo cultural do aglomerado urbano de Setúbal, conscientes de que nesta cidade existiu uma situação paradigmática, embora imperfeita, de cultura operária que merece a atenção dos historiadores interessados no estudo da vida quotidiana dos trabalhadores portugueses, principalmente daqueles que, normalmente, designamos por proletariado, esmagadora maioria da população setubalense. Este estrato social, possuidor das mais diversas culturas trazidas de suas terras de origem, como já foi referido, misturam-nas, recriam-nas, para produzir algo de novo, fruto da união que a vida quase em comum, em pátios, "vilas", "ilhas" e mesmo bairros, forçou, transformando um grupo de gente, oriunda de vários pontos do país, que nem sequer se conheciam, numa família com problemas e necessidades comuns. Assim, organizam- -se nos tempos de lazer, cedendo as suas experiência culturais que se misturam e transformam em algo de novo e paradigmático. O próprio facto de se sentirem marginalizados pela burguesia local, afastando-os para longe das suas zonas residenciais e do seu próprio espaço de lazer, facilitou a criação da cultura operária aqui produzida.
A alta e média burguesia, instalada em boas residências, fazia uma vida mais caseira, deslocando-se apenas às suas associações de classe ou de recreio (ex.: Clube Setubalense), às touradas, onde ocupavam os seus camarotes, aos espectáculos locais (especialmente aos teatros D. Amélia, posteriormente denominado de Avenida e de Luiza Todi, e ao Salão Recreio do Povo), em idênticas condições, mas especialmente a Lisboa, para assistir às variadíssimas actividades culturais que ali se desenvolviam. A pequena burguesia, mais ligada aos bairros onde viviam os operários e, normalmente, sem acesso aos locais de diversão dos estratos mais elevados, era um elemento de ligação entre a cultura burguesa a que tinha acesso e a cultura operária que muitas vezes ajudava a produzir, oferecendo donativos e materiais necessários para as actividades culturais que os operários realizavam nos seus bairros, nos pátios ou, simplesmente, nas ruas. Assistiam às festas e convívios das janelas de suas casas, chegando mesmo a participar neles. Para além destas manifestações espontâneas, embora de fracas posses, os operários frequentavam assiduamente as touradas, os espectáculos, onde ocupavam os lugares mais baratos, logo menos confortáveis, as associações de classe e de recreio, deslocando-se também a Lisboa para assistir a actividades culturais, pois ali também existiam espaços para os quais os preços eram mais acessíveis. Ainda no século XIX, realizavam-se ao Domingo carreiras de vapor entre Alcácer do Sal, Sesimbra, Arrábida e Setúbal, ou apenas entre Sesimbra e Setúbal, a preços reduzidos, para que os habitantes daquelas povoações pudessem vir a Setúbal assistir às touradas na Praça de Touros D. Carlos e aos espectáculos no Teatro Bocage, ou ainda a feira e as festas, em tempo destas. Também se realizavam carreiras nestas condições entre Setúbal e Lisboa, para que as pessoas de menor capacidade financeira tivessem possibilidade de assistir às várias actividades culturais que se produziam na capital do reino e vice-versa, sobretudo em tempo de feira e de festas. Posteriormente, a própria empresa dos caminhos-de-ferro concedia descontos especiais a grupos que se deslocavam a Lisboa para assistir a espectáculos de várias espécies e ainda aos lisboetas que, também em grupos, visitavam Setúbal durante a Feira de Santiago e ainda quando se realizavam as festas da cidade, Círio da Arrábida e Festas Bocageanas.

Desde sempre abundaram os espectáculos em Setúbal, mesmo quando se verificavam carências graves, em relação a espaços condignos para as exibições, como se poderá verificar através dos quadros e gráficos que se seguirão sobre este assunto. Os espectáculos taurinos, muito apreciados pela população, sempre se realizaram mesmo antes de ter sido construída a praça de touros de Setúbal, no ano de 1889. Até então, estes espectáculos realizavam-se nos claustros do Convento de S. João que, embora não possuísse dimensões apropriadas para as lides, fora adaptado para o efeito, como comprova o programa que seguidamente apresentamos.

Praça Touros Carlos Relvas
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Em 1889, com a construção da Praça de touros D. Carlos I, as touradas passaram a possuir instalações condignas e, consequentemente, a atrair mais adeptos. Sobre os espectáculos musicais e de teatro, ao lermos a imprensa local, sentimos imensa dificuldades em definir espectáculos vindos do exterior, principalmente de Lisboa, exibidos em casas de espectáculos ou em barracões, exclusivamente representados por companhias "de fora". Isto porque, cada empresário, ao contratá-las para apresentarem os seus espectáculos, aproveitava para introduzir números representados, tocados ou cantados por artistas de Setúbal; a orquestra acompanhante era, normalmente, composta por músicos locais, embora, por vezes, aparecessem elementos vindos com a companhia; o próprio maestro era quase sempre setubalense, salvo raras excepções. Nos finais do século XIX as sociedades recreativas, de que destacamos a Capricho, fundada em 1867 e a União em 1899, conjuntamente com o teatro Bocage, existente desde 1834, e ainda os teatros desmontáveis e ao ar livre, animavam o aglomerado urbano com alguns espectáculos de companhias, ou simplesmente actores, vindos da capital do reino, embora dominassem as representações e outras actividades culturais dinamizadas por grupos setubalenses. No Verão, especialmente no período da feira os irmãos Dallot, empresários do teatro Aliança de Lisboa traziam a Setúbal companhias profissionais dos Teatros Condes e Príncipe Real, entre outras atracções como o teatro infantil, com fantoches também, que, em 1885, se instalava num barracão frente ao Largo Bocage. Mas o século XX surge-nos já com outras hipóteses de exibição do bons espectáculos, uma vez que, em 1894, se havia inaugurado o Teatro D. Amélia; em 1907 nascia o Salão Recreio do Povo e em 1908 o Casino Setubalense, além de as exibições continuarem nos chamados chalet-teatros e ainda nos barracões onde se podia assistir aos animatógrafos, filmes que também eram exibidos nas salas de espectáculos, embora quase sempre acompanhados por outros tipos de espectáculos ao vivo.
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FEIRA de SANTIAGO

A sua estreia na cidade foi, segundo a imprensa local, durante a feira de Santiago, no ano de 1902, numa barraca montada para o efeito e que funcionava todas as noites com três e quatro exibições diárias. Voltava a Setúbal várias vezes durante o ano, mantendo sempre a casa cheia. Seguidamente, algumas casas de espectáculo do aglomerado urbano iniciaram também a exibição de fitas cinematográficas, de que se salienta O Salão Recreio do Povo, O Salão Paraíso, O Bolander e o Casino Setubalense.
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Teatro Luiza Todi

O Teatro Luiza Todi inicia-se mais tarde (1918) no cinema, mas também consegue grande afluência. As sessões eram diárias, com mais do que uma exibição por casa de espectáculos que funcionavam em simultâneo. A amostragem, que nos foi possível explorar até 1930, prova que o público gostava de ver cinema pois que, além de ser mais barato, constituía uma novidade. Isto justifica, embora parcialmente, a grande quantidade de espectáculos cinematográficos que se realizavam na cidade de Setúbal. Embora o seu verdadeiro número não apareça no Quadro 4 e no Gráfico 6, por não ser possível identificá-lo, era o que apresentava anualmente maior número de sessões, a partir de 1902.
No dia 15 de Dezembro de 1906, representou-se pela primeira vez no teatro D. Amélia a opereta de Andran, "A Mascote", com a estreia do actor Eusébio. Na Sexta- -Feira, dia 21, subiu à cena em benefício da actriz Margarida Veloso, "Os 28 Dias de Clarinha". O actor Eusébio cantou "O Tio Bernardino" e aquela actriz "Os Meios de Transporte. No dia 19 de Março de 1908, anunciava que "Conelli, ciclista e lutador de luta greco-romana, detentor do Brassard nº 1 de 1907, (Real Coliseu de Lisboa) e campeão muito conhecido em Portugal, solicitou da empresa do Casino Setubalense licença para desafiar qualquer pessoa, que se sentisse com forças para o vencer, a lutar no palco do mesmo Casino (luta greco-romana), oferecendo ao seu vencedor a quantia de 20$000 réis, à semelhança do que já havia feito "nos coliseus" de Lisboa. [Neste contexto], o Casino Setubalense, no desejo de proporcionar à cidade de Setúbal um espectáculo sensacional", pôs o seu palco à disposição do campeão. As inscrições foram abertas nesse mesmo dia, no escritório daquela empresa, "devendo começar os match no Sábado, 21" do mesmo mês. No dia 26 de Março podemos ler, em primeira página, o relato dos combates. Neste mesmo dia surge-nos o anúncio do espectáculo dado por Piteira, na Salão Recreio do Povo, com as espanholas Irmãs Criollas, que haviam atraído ali muita gente. O proscénio era pintado por Francisco Augusto Flamengo que, mais uma vez, mostrou as suas capacidades artísticas. O periódico congratula-se com o facto de, apesar das suas divergências com o empresário, ter procurado "satisfazer o público setubalense, que gosta muito de tudo isto". E, em segunda página, anunciava-se um espectáculo no Casino Setubalense, onde os grandes artistas Salgados apresentavam "a mais grandiosa pareja de baile, as estrelas verdadeiras da actualidade que fizeram extraordinário sucesso no Coliseu dos Recreios de Lisboa e em toda a Espanha, as Hermanas Camelias, duas belas raparigas que [mereceram] aplausos da numerosa concorrência [por terem apresentado] ao povo setubalense aquilo de que ele mais gosta", a dança. Com o desenvolvimento dos espectáculos cinematográficos começaram a aparecer as sessões mistas, durante as quais se exibiam filmes e se apresentavam espectáculos ao vivo, situação que se verificava nas três principais casas de espectáculos: D. Amélia, Salão Recreio do Povo e Casino Setubalense.

Batalha de Flores

Actividades culturais fora do aglomerado urbano
A população de Setúbal promovia passeios e excursões, para conhecer o seu país natal e, muitas vezes também, para acompanhar as bandas e grupos de teatro locais que, a convite de sociedades recreativas de outras cidades, vilas e até aldeias, se deslocavam para exibir as suas actividades artísticas. No entanto, o que mais fazia vibrar as gentes setubalenses de todos os estratos sociais era a Serra da Arrábida e o rio que a borda. Assim, os passeios à serra, quer por terra, quer por rio e mar, os piqueniques, enfim, as próprias festas religiosas e profanas, como já foi referido, eram o alvo preferencial das gentes sadinas. Como exemplo, citaremos apenas um entre tantos anúncios de passeios à serra, dinamizados pelas sociedades recreativas, pelos clubes de futebol, pelas associações de classe, por grupos que, para tal fim, se organizavam, enfim pelos setubalenses: "O Ginásio Setubalense promove um passeio à serra da Arrábida no próximo Domingo 5 do corrente". Podem inscrever-se todos os sócios. Compõe-se de parte fluvial, parte pedestre. Para os que preferirem irão de vapor até ao Portinho. Para os que desejarem andar mais a pé irão de trem até ao Outão, donde continuarão a viagem a pé.
As excursões pelo país e mesmo ao estrangeiro eram inúmeras, como se pode verificar através dos anúncios publicados na imprensa local e também publicitadas em folhetos que os organizadores faziam distribuir pela população, quando eram públicas, ou apenas pelos sócios quando dinamizadas por sociedades recreativas ou por clubes, de frequência bastante seleccionada como era o caso do clube Tiro-Tauro.

Arte e Cultura setubalenses
Música, teatro e pintura foram, desde sempre, os temas mais importantes na produção artística setubalense. Desde o século XIX que se encontram vultos setubalenses como grandes nomes da pintura nacional.
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Pintor João Vaz

Foi o caso de João Vaz, um dos mais jovens pintores da 1ª geração naturalista. Também Fernando Santos, discípulo de Columbano e Malhoa, era natural de Setúbal. Ambos deixaram mais rica a pintura setubalense da qual se destaca "o esboceto para o seu monumental Bocage e as Musas, encomendado pela Câmara Municipal de Setúbal e executado em 1929", tendo sido também nomeado decorador oficial da Exposição Regional de 1930. Na década de 1920, coleccionadores setubalenses trouxeram para Setúbal obras de pintores importantes da época. Destes destacamos Olga de Morais Sarmento, que comprou e recebeu de presente, quadros de autores das gerações modernistas como Almada, Botelho, Eloy e Fougita, entre outros. Em 1926 Correia da Costa (escritor ligado a Setúbal), pediu a Almada Negreiros que lhe desenhasse a capa de um seu livro. Desenvolveu-se, entretanto, uma corrente local de pintura que fora "brilhantemente representada pelo retratista Francisco Augusto Flamengo (falecido em 1915) [e se prolongou] na obra de José Maria da Silva, também poeta [...]. Em 1929, fruto, em parte, do ensino ministrado no atelier de Lázaro Lozano, e certamente, da irradiação das novas ideias a partir de Lisboa, [surgiu] um grupo de jovens pintores, autodesignado Alma Nova, constituído por Álvaro Perdigão, Luciano dos Santos e Celestino Alves [...]". Não seria lícito deixar de falar no célebre desenhista Agripino Maia, entre muitos outros, que permaneceram mais ou menos incógnitos, mas que pintaram o rio, a serra, a cidade e as suas gentes deixando testemunhos riquíssimos da cultura operária setubalense. No campo da escultura apenas se poderá salientar a obra do ceramista Pereira Cão que se destacou na pintura do azulejo. Na escrita salientaram-se, desde finais do século XIX, Anna de Castro Osório (poetisa e escritora), Paulino de Oliveira (jornalista, poeta e escritor), António Maria Eusébio (poeta popular), Almeida Carvalho (estudos históricos), Manoel Maria Portela (escritor, poeta e estudioso na área da História), Januário da Silva (jornalista e escritor), Arronches Junqueiro que se dedicou à História, à Etnografia e às Ciências Naturais, Marques da Costa que escreveu sobre Arqueologia, Fernando Garcia que dissertou sobre Geografia Humana, Fran Paxeco, biógrafo, Manuel Envia, Afonso Ventura e Ariovisto J. Valério, autores de peças de teatro, entre muitos outros nomes ligados ao jornalismo e à produção de textos quer em prosa, quer em verso.
No campo musical, Setúbal possuiu, desde há muito, grandes valores a nível local, nacional e mesmo internacional. Falaremos apenas daqueles que produziram a sua obra no lapso de tempo que estudámos: dos finais do século XIX a 1930.
João Gomes Cardim, nascido em Setúbal a 11 de Setembro de 1832, musicou no Brasil e em Portugal. Das suas produções salientamos as partituras para peças "Harpa de Deus", "Joana d’Arc" e "Os Argonautas", entre outras obras de grande importância; faleceu em S. Paulo (Brasil), a 30 de Abril de 1918.
Joaquim José de Sant’Ana, nascido em Setúbal no ano de 1835 e, embora só iniciasse a sua carreira de compositor depois dos 30 anos, foi regente das Sociedades Capricho e União, compôs em Portugal no Brasil e em Itália.
Frederico do Nascimento, filho do também compositor António do Nascimento de Oliveira, nasceu em Setúbal, no ano de 1852. O seu primeiro concerto de violoncelo teve lugar em Lisboa mas trabalhou também em Setúbal, "onde nessa época se cultivava a arte musical em alto nível e se organizavam com frequência concertos e recitais", mas veio a falecer no Brasil, onde teve funerais nacionais, pois naturalizara-se brasileiro.
Plácido Stichini, nasceu em Setúbal, em 1854, que deixou aos 18 anos, vindo a ocupar o cargo de maestro no Teatro da Rua dos Condes: "Foram inúmeras as obras de Plácido Stichini. Quase todo o teatro ligeiro do século passado foi musicado pelo seu talento". Também acabou seus dias no Brasil, no ano de 1897.
Celestino Rosado Pinto, nasceu também na cidade sadina a 17 de Dezembro de 1872. Pianista, organista, violoncelista, compositor e instrumentista, compôs desde os 11 aos 84 anos deixando-nos inúmeras obras de incalculável valor nas áreas da música sacra, música de sala e música de teatro, num total de cerca de 230 composições de música sacra e mais de 300 de música profana. Colaborou em operetas cujos textos eram da autoria dos setubalenses Januário da Silva e Manuel Envia, entre outros.
Antonio Eduardo da Costa Ferreira nasceu em Setúbal no ano de 1875, tendo sido aluno e professor do Conservatório Nacional. Dedicou-se, fundamentalmente, à produção de música de carácter popular. Foi autor do célebre "Preito a Bocage" tocado aquando do I Centenário da morte do vate setubalense e ainda do 2º "Hino a Bocage" executado durante as comemorações do bicentenário do nascimento do poeta.
José Joaquim Cabecinha, também natural de Setúbal, em 1907 organizou e dirigiu a orquestra na inauguração do Cine-Teatro Grande Salão Recreio do Povo, onde compunha e executava a música que acompanhava os filmes mudos. De 1908 a 1929 dirigiu várias orquestras e escreveu música para 32 peças teatrais com letra de vários setubalenses como, entre outros, Afonso Ventura e Manuel Envia. Escreveu música sacra e música profana e ainda vários hinos, de que se salienta o da Associação Operária de Socorros Mútuos Setubalense, marchas, música teatral e de orquestra. No dizer de um cronista da época, José Joaquim Cabecinha foi "um espírito regionalista, fiel ao ambiente psicológico em que se inspirava, traduzindo em beleza musical toda a beleza da nossa privilegiada região sadina".
Armando Gomes, também natural desta cidade, foi violinista e professor de canto coral no liceu de Setúbal, durante 40 anos. Colaborou na Academia Sinfónica de Setúbal, criada em 1914, e fez parte de todas as orquestras organizadas na cidade, como maestro, regente, solista e compositor. Organizou vários serões de arte e concertos, de que destacamos os realizados no Salão de Festas do Asilo Dr. Paula Borba, dedicados a compositores e precedidos de palestras, ao serviço da cultura do povo setubalense.
Não nos é possível ignorar outros talentos como Idalécio do Carmo Cabecinha e seu irmão Idalino Cabecinha, filhos do já citado José Joaquim Cabecinha, compositores e intérpretes de excepcional valor, mantendo, assim, a celebridade do nome herdado de seu pai e a fama da cidade sadina.
No campo teatral, sabemos que, em 24 de Outubro de 1908, subiu à cena no Salão Recreio do Povo, a primeira revista local de Manuel Envia, Scenas e Quadras, que deu 65 representações, sempre com casas cheias e no meio de fartos aplausos. Gregório Campanudo, o célebre Compére da revista, era desempenhado pelo conhecido e consciencioso artista setubalense António Pereira. Em 1929, para festejar os 20 anos da sua apresentação, voltou ao palco, com grande aplauso. Segundo o autor da notícia, director do Sado Reclame e também autor da peça, Manuel Envia, conclui: "As empresas de Setúbal devem ter-se convencido desta grande verdade - nada substituirá o teatro local". "O sucesso de "Scenas e Quadras", que muitas noites deu três sessões, era de tal ordem que o empresário Piteira, entusiasmado, chegou a cantar coros e a dançar entre os bastidores quase envolvido com o pessoal artístico. "O Compére, Gregório Campanudo, homem de físico robusto, fazia rir logo que aparecia. "A peça tinha miolo e prendia a atenção do espectador sem auxílio de trucs. E tinha ainda uma selecção de artistas que imprimiam vida e movimento à revista, desde a endiabrada Beatriz Lança à engraçada Alice Teixeira. O pessoal masculino era todo de Setúbal: Manuel Aldegalega, Caetano Alberto, Abel Mesquita. Álvaro Corte Real, etc. Trabalharam também, nesta peça, Alice Figueira, Júlia Lopes, Júlia da Conceição e Estefânia Lança. O procedimento da empresa do Salão, retirando peças locais em pleno êxito para dar lugar a outras, não caiu no agrado do público, por isso a reprise do "Bota Abaixo" já não deu o que se esperava". Segundo Manuel Envia, iniciativas artísticas em Setúbal só vingavam se estivessem em harmonia com a cultura do meio. Cantar o fado em Setúbal, devia dar uns quarenta escudos por dia, sem grande custo, o que era, segundo o crítico teatral, uma recompensa digna de um grande artista. Mas um grande artista, se fosse escritor, pintor, músico ou poeta tinha que morrer de fome porque a admiração por essas artes não tinha elenco nem passava de manifestação platónica. "O Artista de Setúbal tem o seu período áureo. É quando ainda é novidade a manifestação do seu espírito. Mas passa depressa, depois terá que trabalhar na fábrica ou em algum armazém para carregar sacas ou no cais para tomar nota do expediente e quanto à arte não tem tempo para pensar mais nisso sob pena de morrer de fome". No entanto, o teatro escrito por autores locais, de que se salienta Manuel Envia, continuava a fazer vibrar os setubalenses que enchiam as salas onde este tipo de espectáculo se exibia, como se pode verificar através das várias notícias dos jornais. Em Setembro de 1929, duas grandes empresas digladiaram-se em Setúbal, uma com obras regionais, outra com "obras exóticas. Qual vencerá?" perguntava o articulista. Mas em 8 de Setembro, anunciava a vitória do teatro local, pois a casa continuava cheia e a peça a ser muito aplaudida, pelo que considerava importante manter vivo o teatro setubalense.
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GRANDE SALÃO RECREIO do POVO

A revista chamava-se "Bota Abaixo" e estava no Salão Recreio do Povo. Nesta casa de espectáculos foi também representada a opereta "Madrugadas de Amor", da autoria do setubalense Manuel Envia, desempenhada pelo grupo de marítimos de que faziam parte Eduardo Bailão, António Gomes, João Estrela, José da Costa, José Carrau, Inácio Moinho e Abílio Ramos, coadjuvados pelas actrizes Lina Santana, Antónia Viana, Maria da Luz e Cacilda Viana. A Música era de João Venâncio Tavares.
A publicidade aos espectáculos era permanente e exaustiva, em todos os números dos jornais. Como exemplo citamos: " Há festas na sede da Sociedade Capricho, comemorativas do seu 62º aniversário. Às 9 horas da noite grandioso baile dedicado às Damas frequentadoras desta Sociedade. Toca o grupo de Saxofone Capricho e piano. No dia seguinte sarau à francesa e monólogos no palco, sob a direcção de Luís Cesteiro. Das 3 às 5, concerto pela banda da Sociedade União nas salas da mesma sociedade.
À noite no Salão Recreio do Povo a revista "Peixe Fresco", e no Luiza Todi grande sessão cinematográfica. Desafios de futebol, excursões em camionetas, a Palmela, Azeitão, Cacilhas. Partidas da Praça do Bocage a preços reduzidos". Mas, o teatro mantinha-se em primeiro plano, especialmente o local. Assim, "Berbigão para Arroz", título da nova revista escrita pelo autor da notícia, Manuel Envia, sob o pseudónimo de Geo, (a convite da gerência do Salão Recreio do Povo), teve grande êxito entre os setubalenses. Tinha 2 actos e 8 quadros. Era a 12ª escrita pelo autor, o que em Setúbal foi um record de produção . Também de Envia não poderemos ignorar o sucesso que obteve em 1921 e 1922, a revista "Vivas sem Sal" que esteve em palco no Chalet Izabel Costa. Deu 26 representações, nos dias de 4 de Dezembro de 1921 a 23 de Janeiro de 1922. A música era do maestro setubalense Celestino Rosado Pinto. Nela encontramos, no 3º acto "quentes e boas", um poema ao mar que traz a Setúbal "[...] a salina aragem [que] refresca e perfuma/co’ a branda viragem/ [...]/ um encanto assim/pois nada há mais belo/que este mar sem fim/[...]".
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TEXTO RETIRADO DA NET DESCONHECIDO O AUTOR
Texto ilustrado com fotografias de vários Fotografos
Montagem de Victor Serra